AGORA USO CREME PARA OLHEIRAS
Tudo começou há uns dois anos, teve um dia... Que não marco pela data, mas pelas sensações que me provocou. Nesse dia, resolvi assumir de vez minha pouca memória factual, assumir a metáfora que sempre fui. Naquele dia, resolvi gastar o relógio olhando o tempo, observando mais uma vez a paisagem do mesmo apartamento da 411.
Eu, que nunca enxerguei bem, naquela janela banal, resolvi erguer o olhar. O muito que aquilo significava poucos perceberiam. Mas isso foi uma das novas sentenças que se estabeleceram em mim a partir daquele dia: a realização é pessoal e banal.
Lembro com alguma nostalgia o meu esforço constante, naquele dia, para aprumar o corpo, a cabeça, para olhar um pouco mais alto, um pouco mais longe. Brasília de fato é uma cidade de grandes horizontes. Belos horizontes. E de muita luz. Já fiz coleção de óculos escuros. Agora uso um bem bacana até acabar.
Aquele: pronome demonstrativo. Aquele dia demonstrou que meu caminho no mundo eu mesmo traço. Com abraços a Gilberto Gil e a tantos outros que já musicavam a trilha bem antes de eu existir.
Agora solto meus acordes sinceros e baratos. Talvez um dia eu ria de satisfação, ou de graça mesmo, do absurdo que tudo isso possa me parecer. Diante de um espelho, um balcão com xampus velhos que nunca mais usei, com algum objeto estranho na gaveta, parecido com o ventilador que guardo no banheiro atual, com um creme anti-rugas que certamente estará lá, um dia...
Agora uso creme para olheiras. Porque ele me deixa mais bonito. E é só isso. Mas é importante. A partir daquele dia, fui montando uma lista de só issos importantes. Fui descobrindo que banalidade traz realização, como aquela janela.
Gosto das janelas. Elas permitem que eu veja o mundo sem interagir com ele. Gosto dos hiperlinks. Eles permitem que eu veja o mundo sem interagir com ele. Gosto também de interagir e também gosto dos paradoxos.
A partir daquele dia consegui erguer o olhar, mesmo que das janelas, materiais ou virtuais. Janelas e hipertextos são graças de um mundo particular. Agora eu uso a palavra. E às vezes grito, da janela ou do hiperlink, como convém a quem gosta de interagir e aos poetas.
Eros Trovador
Abril de 2009