ÁLBUM: ESSE NOSSO CONHECIDO
Durante séculos a música foi apreciada somente ao vivo, até que o século XX viveu um boom tecnológico que fez surgir as máquinas de reprodução musical. A partir daí, passamos a experimentar uma maneira nova de apreciação musical: a música gravada. Isso proporcionou o surgimento do álbum, um objeto que se inseriu paulatinamente em nosso cotidiano.
Dessa novidade, vimos surgir dois fenômenos: a consolidação das gravadoras (fazendo da música muitas vezes uma mercadoria cultural para as massas) e a elaboração de um discurso artístico, de alguém ou de um grupo, por meio do álbum. Essa elaboração passava (e ainda passa) pela seleção das músicas, escolha dos músicos, instrumentistas e instrumentos, leiaute do álbum, etc. Começamos a nos relacionar com o artista por meio de seu LP, K7 ou CD.
Toda essa maneira de relação com a música começou a ser questionada com outro boom tecnológico: o digital, que dos anos 90 para cá passou cada vez mais a fazer parte de nosso cotidiano, inclusive do cotidiano musical. A Internet surgiu, cresceu e continua crescendo e trouxe o compartilhamento de arquivos, uma novidade que mudou nossa relação com a música e a produção musical em si.
Com a possibilidade de troca de arquivos pela Internet, passamos a acompanhar o esforço da indústria fonográfica em se reinventar, já que, cada vez mais, menos gente compra CDs. Por outro lado, surgiu um instrumento valiosíssimo para a Música Independente, que encontrou, finalmente, um canal de distribuição, já que nunca contou com toda a estrutura logística das gravadoras. Isso já é um mérito em si: vivemos uma época de democratização da produção musical e cultural e já são muitos os casos de qualidade e de sucesso que emergiram da Web.
No entanto, a novidade trouxe também um problema para o artista: passou-se a apreciar a música de maneira independente dos álbuns. Assim, já é muito comum baixarmos uma, duas ou três músicas de um álbum (aquelas que nos agradam) e estas são, geralmente, arquivadas em pastas genéricas de estilos musicais (como MPB, por exemplo, onde vários artistas dividem o mesmo espaço) e pastas dos próprios artistas (misturando as músicas de vários álbuns). Em outras palavras: se, por um lado, o discurso artístico característico dos álbuns ganhou um alcance nunca antes imaginado, por outro, perdeu sua força como elaboração, pois ficou fragmentado.
Foi pensando em todo esse contexto que lançamos recentemente o Álbum Virtual “Palavra”. Trata-se de um novo formato de álbum que busca se apropriar das novidades tecnológicas, mas vai além disso, por produzir uma arte inserida na cultura de nosso tempo, a Cibercultura.
Do ponto de vista da produção musical, cabe destacar algumas propostas desse formato, como, por exemplo, sua estrutura hipertextual. O hipertexto (esse grande texto construído, na Web, por meio dos hiperlinks em um processo contínuo) já é utilizado frequentemente, inclusive quando músicas são colocadas à disposição na Internet. É isso que acontece quando chegamos em algum site (geralmente por meio de um hiperlink) e encontramos ali várias músicas disponíveis para serem baixadas, cada uma em outros hiperlinks.
A novidade do álbum “Palavra” é que não nos interessa somente uma lista de músicas ou textos. O que buscamos é a construção de uma rede que se forma a partir de vários fragmentos, músicas e textos, por exemplo, que compõem o álbum. Dessa forma, apesar das músicas, poesias e demais textos fazerem sentido se apreciados isoladamente, há um sentido maior do próprio álbum, gerado por meio das conexões feitas entre esses vários fragmentos. O álbum torna-se um hipertexto musical, visual e poético.
O novo álbum é atualizável, não é uma obra acabada, pronta para aquisição. A cada atualização, os interessados são informados por e-mail e têm a oportunidade de revisitar o que já estava publicado e foi hiperlinkado na nova música, no novo fragmento inserido. De uma forma digital, recupera-se a apreciação ao álbum tão conhecida como hábito daqueles que apreciaram música em LP, K7 e CD.
O álbum é, na verdade, um espaço, não um objeto. É um espaço de múltiplas combinações (devido a não-linearidade sugerida pelos hiperlinks) e de interações, que acabam por direcionar a continuidade da obra. Assim, configura-se uma obra aberta, propositadamente inacabada: as possibilidades de trabalho colaborativo e o desejo de co-autoria dos usuários da Web, característicos da Cibercultura, são incorporados. O álbum promove formas de interação que podem resultar em seu próprio direcionamento, como, de fato, já tem acontecido. Colaborativamente, já contamos com a atuação de outros artistas e profissionais que têm ajudado a pensar e elaborar o trabalho.
O formato dá a possibilidade, ainda, de explicitar não somente o trabalho do artista, mas, também, as obras que o influenciaram. Assim, já estão no álbum, hipertexto poético que é, fragmentos de Fernando Pessoa, Rilke e Mário Quintana, por exemplo. Os fragmentos desses autores são hiperlinkados com outros textos do álbum, em frases ou palavras específicas, passando a se relacionar diretamente com a produção autoral que é apresentada nesse espaço.
A percepção desses elementos fez nascer o álbum Palavra e, já no pouco tempo de sua publicação, fez surgir interações que vão dando forma à obra. Temos construindo um álbum sem a pretensão de finalizá-lo, ao contrário, talvez isso nunca aconteça. Buscamos consolidar um espaço virtual onde um discurso artístico toma formas a cada nova contribuição.
O leiaute também foi construído colaborativamente e resultou em uma proposta minimalista, explicitando a idéia de pensar a palavra, sua força expressiva, em tempos de uma cultura multimídia, a poesia, o poeta e o poético, a leitura poética do mundo, enfim. São palavras que tentam alcançar essa nova maneira de olhar para o mundo: um grande hipertexto. Um espaço para uma arte não linear, mas dotada de sentido. Sentido que vai além do conteúdo: as imagens que aparecem na tela são aquelas desenhadas pelas próprias letras.
Todos são convidados a apreciar, interagir, discutir e, se gostarem da proposta, ajudar a construir.
Eros Trovador
Setembro de 2008