O VELHO DICIONÁRIO E A VIOLA DA GAMBA 
 
Em minhas andanças, tive a oportunidade de presenciar fatos extraordinários. Narrei-os em várias oportunidades e os meus leitores conhecem a seriedade de minhas histórias, mas o que agora direi ultrapassa todos os limites do provável e do possível, portanto, peço que abandonem estas linhas antes de abandonar-me para sempre, achando-me presa da loucura. Não se trata de metáfora, de realismo fantástico, de apólogo ou coisa que o valha. Trata-se do meu testemunho de uma história de amor.

Era um palácio ricamente ornado. Filigranas de ouro enfeitavam com discrição todos os aposentos. Os mais belos tapetes orientais orgulhavam-se dos sapatos que os pisavam, vez por outra um salto agarrava-se desesperadamente a uma das figuras bordadas e acontecia o aparentemente impossível. Havia uma sala de música na qual a orquestra habitava com um grupo de instrumentos muito especiais. Claro que as rivalidades surgiam, as paixões explodiam. Contudo, a batuta transformava os gritos, os gemidos, as lágrimas e os risos em beleza no sentido mais estrito possível. 

Na biblioteca, exemplares raríssimos conviviam harmonicamente com jovens publicações. Estranhamente, as palavras viviam em silêncio absoluto, exceto pela interferência dos espanadores que adoravam assobiar, da cantiga das tintas ao derramarem-se no papel para registrar uma nova consulta, do som dos teclados dos computadores que para uns soavam estridentes, pontiagudos, dolorosos, para outros atraentes, sensuais, absolutamente vanguardistas.

Não. Os exemplares não tinham permissão de sair. Várias salas de leitura com vista para o mar e jardins naturais foram construídas e estavam ali, à disposição do leitor. Justificável, pois, ali estava o templo do palácio. Esculturas e pinturas, algumas datadas de 600 A.D., esboços de artistas famosos ali repousavam, fragmentos de objetos de arte de civilizações antigas misturavam-se aos contemporâneos e também dava o ar de sua graça, encantando os visitantes.

Durante 99 dias, visitei cada dependência do palácio com outros tantos curiosos como eu. No centésimo dia, como de praxe, era oferecida uma festa de gala e nos dias que se seguiriam o palácio permaneceria fechado à visitação. 

Ainda não falei que a cada noite todos os convidados se reuniam para um jantar em grande estilo e trocar as suas impressões sobre o visto, lido e ouvido. 

No primeiro dia, impressionou-me uma jovem viola da Gamba, que se destacava na orquestra pelo seu jeito terno de ser. Vi-a, por várias vezes, retirar um acorde de si mesma, tentar afinar-se como se quisesse estar pronta para o seu instrumentista logo que se ele se aproximasse. Via-se o entrosamento perfeito entre ambos, ele a considerava sua, mas ela sabia que embora fosse sua propriedade e se submetesse àquela vontade tão poderosa de seu violonista, o seu coração ansiava por viver um sentimento absolutamente diferente, indefinível, indecifrável, inefável, indefectível... 

Orgulhoso, em lágrimas, o violonista, naquela noite, em seu concerto, recebendo os louros por sua maestria, não conhecia os pensamentos secretos da Viola da Gamba, que se entregou de tal forma à música que a sua melodia ultrapassou o salão, encheu os jardins e acordou o silêncio da biblioteca. Foi um rebuliço. As palavras murmuravam, reuniram-se em formas estranhas, saíram das páginas e criaram asas, consultaram a si mesmas, mas não se sabia como aquilo era possível

No dia seguinte, retornei à biblioteca e pude ouvir alguns comentários que eu não podia precisar de onde partiam, mas todos falavam da música executada na noite anterior.

Claro que no salão de baile as paredes deixaram de ouvir para falar também. É lógico que entre os instrumentos da orquestra havia um não-sei-quê, porque eles não sabiam o que acontecera. Mas algo acontecera. 

Comentando com a Viola da Gamba, que também não soubera exatamente o que acontecera, foram silenciados pela orgulhosa batuta que se aproximava radiante. Finalmente conseguira alcançar o tom da orquestra. Todos os instrumentos demonstraram a sua capacidade máxima. O que ela não quis dizer é que também não sabia o que havia ocorrido.

As apresentações da orquestra nos dias seguintes foram excepcionais e logo outras distrações fizeram esquecer o ocorrido. 

Mas, aos meus olhos, o intrigante mistério precisava ser elucidado. Eu vi, vi a Viola da Gamba esticar-se até a biblioteca e tocar um Velho Dicionário. Eu vi. Eu vi as mãos da Viola da Gamba abrir as páginas daquele livro enquanto cantava.  O Velho Dicionário chorava emocionado ante a beleza  da voz da Viola da Gamba, com a sua tristeza alegre, o seu corpo jovem, os seus belos olhos, as suas mãos macias e a sua vontade de aprender. Ela queria saber mais, apenas isso. Não queria ser apenas a primeira viola da orquestra, como muitos pensariam mais tarde.
  
O Velho Dicionário estava encantado. Tão falador que sempre fora, não sabia o que dizer. Conhecia tantas palavras, explicava bem ao seu modo o significado de cada uma delas, mas jamais havia podido reuni-las de forma diferente. Admirava o poder do poetas, pois, incapaz de amar como eles, entristecia-se por tratar as palavras tão lexicalmente, por causa de sua limitação dicionária. 
        
De repente, estremeceu. Sentiu o gosto do beijo da Viola da Gamba a percorrer-lhe todo o corpo e, assim, reorganizou as próprias páginas e rebelou-se. Convidou as palavras que o compunham para dançarem enquanto a Viola da Gamba tocasse. Felizes elas desencantaram, cantaram, dançaram, exaltaram a vida e deixara de ser puramente palavras para se tornarem amor, desejo, poesia e, finalmente, encantaram-se com o seu modo de ser: ser palavra, essencialmente, palavra.
        
O Velho Dicionário não cabia em si de felicidade. Ele próprio vestiu-se ricamente, ajustou  a sua gravata borboleta, pôs o pincenez esquecido, o binóculo em um dos bolsos e desceu com todas as suas palavras, com todos os seus sons. Só ele permanecia em seu eloqüente silêncio. 

Chegou ao salão de baile e lá estava ela em sua perfeição, em toda a sua plenitude. Ela o viu. E sorriu. Ela esticou um pouco mais a melodia e beijou-lhe a boca. Ele conhecia o significado daquele gesto, sabia bem o que era aquilo, mas nunca havia experimentado aquela vertigem, aquele desejo, aquela paixão.  E, pela primeira vez, não quis consultar a si próprio. Não queria pensar, nem explicar... Só queria sentir. 
          
No trigésimo nono dia, todos se retiraram e os dois foram para o jardim, ela tocava e ele falava... ela tocava e ele falava... Disseram da paixão impossível, dos destinos diferentes que  a vida reservara para eles, da impossibilidade daquele amor. Ele jamais poderia retê-la em uma biblioteca e ela jamais o poderia carregar, a não ser em seu coração, para sempre. Coração que pertencia por lei ao jovem violonista. Restavam ainda cinqüenta e nove dias em presença um do outro.
        
O Velho Dicionário foi amarelando de repente. Todos notaram a diferença. O jovem violinista não entendia a tristeza da viola por mais que ele cuidasse dela. Chegou a pensar em abandoná-la e assim o fez. Tomou uma nova viola, vaidosa demais, rebelde demais e aprendeu com ela a respeitar o modo de ser de sua companheira. Ela não era apenas uma coisa, um objeto, um instrumento, mas, um ser musical. E tomou a Viola da Gamba com mais cuidado, acariciou-a, beijou-a, elogiou-a e pela primeira vez tocou-a para a própria namorada que morria de ciúmes dela. Ambas ficaram amigas.

O Velho Dicionário agora olhava as palavras de forma diferente, via-as com olhos diferentes, abria-se para o mundo com outro coração. Fora tocado pela paixão latu sensu, confessou isso para si mesmo e para um livro de poemas que gostava de ficar ao seu lado. É claro que o jovem livro o instigava a prosseguir e quem sabe até a fugir da biblioteca, seria até mais útil em outras paragens. 

Conceberam um plano de fuga, coisas de jovem poeta, mas o Velho Dicionário compreendeu que não poderia viver fora da biblioteca que o abrigara por todos aqueles anos. Pertencera ao pai do rico marajá que com ele havia presenteado a sua única filha aos sete anos de idade, com a afirmação: este é o seu melhor amigo, filha querida. E, ainda hoje, ela, como única dona daquela biblioteca, ainda o consulta. Era o único livro que saía da biblioteca. 

Naquele nonagésimo dia, sepultara todos os sonhos impossíveis, ativados pelos acordes da Viola de Gamba, e decidira tapar os ouvidos para sempre. Mas, para que ela nunca o esquecesse, ele lhe enviou a carta que ora transcrevo e, no centésimo dia, a Viola de Gamba nos brindou em uma bela composição musical, como um presente:

queria te dizer o quanto se enganam os que se embriagam no prazer até caírem adoecidos e,
mergulhando em barris de vinhos, 
se afogam no desespero do desejo de novas sensações... 
para falar-te apenas do sentido do que exalta os sentidos
do gosto do beijo que me deste sem me tocar 
do calor da tua pele morena a queimar as minhas lembranças 
das ondas que me fazem navegar tranquilamente em teus olhos 
do cheiro de vida que trazes em minhas horas de morrer 
da música de cada palavra tua 
morando em ti, 
sinto-me feito de luz 
abrigado do medo de ser 
dormindo em ti 
desperto com a alegria de mil risos de cristais partidos e espalhados pelo chão que pisas.
ah! quanto se enganam os que quiseram amar... 
o amor é um presente... 
        
De repente, um cheiro de perfume com notas de todos os vinhos, de todas as uvas, com a cor dos lábios da Viola da Gamba, essa cor malbec, me entonteceu e eu desmaiei...


TEREZINHA SANTANA
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