Vivemos na ressaca da comunicação de massa, ainda convivendo com o jornal, o rádio, a televisão. Pierre Lévy, um dos principais teóricos da Cibercultura, marca o surgimento da imprensa como a segunda revolução informacional, que permitiu a comunicação “um-todos” – a primeira revolução informacional teria sido o surgimento da escrita que, até a imprensa, funcionou como comunicação “um-um”. De fato a Idade Moderna foi o palco dos meios de comunicação de massa, via de regra usados como instrumentos de dominação e alienação.
A tecnologia digital – e a cultura que fez nascer, a Cibercultura – democratizou a informação. Constatamos que alguns blogs e perfis pessoais em mídias sociais têm mais relevância na formação da dita “opinião pública” do que alguns tradicionais jornais. O cinema, a indústria fonográfica e o encantamento audiovisual que provocaram em gerações passadas são resignificados nas múltiplas telas presentes em nosso cotidiano. A partir da tela do celular, dizemos o que pensamos para um mundo virtualmente conectado. Essa comunicação “todos-todos” é identificada por Lévy como resultado da terceira revolução informacional, provocada pela tecnologia digital.
Esse novo contexto, ampliado pela automação dos meios de produção, fez nascer os profissionais da informação e do conhecimento. Viramos garimpeiros de informações e, na maioria das vezes, o que dizemos é uma edição de outras informações que encontramos na rede. No oceano informacional, somos orientados por interfaces que facilitam ou dificultam o acesso à informação – e são notórios os casos de grandes promessas virtuais que não evoluíram por esbarrar em interfaces pouco inteligentes ou atrativas. Aliás, já se fala em interfaces intuitivas…
A tecnologia digital colocou em nossas mãos várias possibilidades, numa proliferação de formatos e de mídias. Encontramos disponíveis vários softwares, editores de vídeo, texto, som, aplicativos. E na linha do “meio é a mensagem“, de Marshall McLuham, um dos principais teóricos da comunicação, essas novas mídias (ou velhas mídias, resignificadas) trazem em si novos elementos para a elaboração de qualquer mensagem, de qualquer discurso, inclusive o artístico.
As interfaces funcionam como integradoras das diversas mídias, sendo um instrumento multimídia por excelência. É na interface que percorremos nossos caminhos virtuais. É por meio dela que acessamos os conteúdos que nos interessam. Uma boa interface é aquela que coloca as informações à disposição do usuário de acordo com seus interesses. É desse princípio que deriva a discussão das interfaces intuitivas, interativas.
As interfaces são verdadeiros palcos virtuais para os artistas. E não se trata somente de usar uma boa interface para apresentar um conteúdo já pronto. Trata-se de ter os elementos da interface presentes quando o objeto artístico ainda não está pronto, em pleno processo criativo. Temos a oportunidade de compor um projeto artístico utilizando os elementos e as possibilidades que nos trazem o hipertexto e seus infinitos links, a multimídia e seus variados formatos, a colaboração do público e da rede de relacionamentos de cada artista, que acabam por também compor a obra, participando ativamente de sua construção.
Para a produção cultural, interessa muitíssimo o hipertexto – e todos seus hiperlinks. Na Web, podemos ter acesso ao trabalho de um artista e, ao lado, conferir suas referências, apreciar conteúdos que ampliam o universo artístico autoral, modificando, a cada link, o hipertexto. Esse mesmo artista pode deixar registrado o percurso de desenvolvimento do projeto, como uma memória da obra aberta. E tantas outras possibilidades dos links.
A interface pode ser entendida como a estruturação do hipertexto. A distribuição dos links, as listas de conteúdos, a relação desses conteúdos entre si, a participação do leitor visível, na tela, são elementos hipertextuais de uma interface. A organização do espaço virtual do projeto artístico passa a ser elemento direcionador da produção. A interface artisticamente pensada é ponto de encontro dos vários elementos que compõem o projeto artístico; é também direcionadora de suas etapas e mediadora da relação do público com o artista – a rede que nasce com cada projeto artístico.
As interfaces das telas que acessamos cotidianamente nos convidam a também pensarmos hipertextualmente, o pensamento complexo, com múltiplas relações e caminhos de entendimento. O conceito poético pensado no projeto artístico é incrementado de maneira hipertextual, seja pela relação de sentidos do repertório selecionado, seja pela ampliação desses sentidos que é possível fazer por meio dos hiperlinks, seja pelos novos elementos que a Cibercultura apresenta para o projeto artístico.
Sendo a interação, a comunicação “todos-todos”, uma das grandes novidades de nossa época, o conteúdo do projeto artístico virtual deve ser interativo, convidando a rede apreciadora a explorar a interface e descobrir seus conteúdos, poeticamente localizados atrás de cada link. O artista multimídia tem uma rede virtual aguardando por interação.
Dessa forma, é possível (e talvez convenha) estruturar projetos artísticos colaborativos, que ultrapassam a relação público-artista, onde o público somente aprecia, para permitir a esse público também colaborar com o projeto e ampliar seus sentidos. Entendendo a produção cultural como processo, o público-autor participa manifestando suas opiniões sobre os conteúdos disponibilizados, enviando contribuições, desenvolvendo parcerias, tão importantes na produção independente.
Se a interface do projeto artístico for estruturada de maneira interessante, a interação e a colaboração podem se tornar o principal elemento de coesão dos conteúdos apresentados. As relações de sentido do repertório seguramente serão reforçadas e/ou ampliadas pela colaboração do público.
Essa multiplicidade de telas pode ser entendida como o ápice do desenvolvimento contínuo do audiovisual, quando tivemos a arte dominada pelo formato do objeto: o livro, o CD, o quadro. E mesmo no caso do cinema e do teatro, quase sempre as experiências foram de apreciação de um objeto artístico no palco, ou na tela. A arte delimitada pela mídia, pelo formato.
Com a tecnologia digital e seus elementos hipertextuais, multimídia e colaborativos, temos a oportunidade de ampliar a delimitação do trabalho artístico organizando projetos para espaços, não para objetos. Estruturar o trabalho artístico em espaços virtuais.
E o espaço virtual seguramente estará repleto de objetos. Cada música, cada texto, cada vídeo, cada ilustração, fotografia e tantos outros elementos virtuais são objetos de uma rede, que possui um sentido poético maior que cada objeto – o hipertexto abriga mais sentidos que o texto. Podemos pensar os projetos artísticos como cartografias artísticas, onde os conteúdos e mídias são estrategicamente posicionados para propiciar sentidos. Essa cartografia é a interface.
No Coletivo Palavra, onde esse conceito se desenvolveu, incluímos a arquitetura de navegação em nossas reuniões de processo criativo. E, muitas vezes, foi a arquitetura de navegação – pensada tecnologicamente de maneira poética – que direcionou a produção dos conteúdos artísticos. Mesmo na produção de eventos físicos, como a PALACOLETIVA, nosso festival multimídia, a definição da programação artística do evento geralmente é realizada depois de conhecermos o local do evento, pois ele dá as pistas para a exploração poética que pretendemos.
No caso de projetos artísticos virtuais, a forma como os conteúdos estarão disponíveis, a interface, deve ser pensada também poeticamente. O layout, as seções, as mídias de cada página, os espaços colaborativos, os hiperlinks entre o conteúdo, todos devem estar em conexão para propiciar ao público a experiência dos sentidos poéticos do trabalho. E dos sentidos ampliados pela colaboração…
Com a proposta de produção cultural no formato de Arte de Interface, nós, no Coletivo Palavra, pretendemos estruturar projetos artísticos que vão além da arte. Permeiam as relações de amizade que nascem do contato e interação com a rede. Possibilitam o diálogo entre artistas que produzem, de alguma forma, trabalhos correlatos. Nesse movimento, o projeto artístico virtual é o ponto inicial de uma conversa, uma relação que se desenvolve durante o processo de produção.
Ao público, à rede de apreciação, fazemos o convite de apreciar arte de uma maneira ativa, explorando os hiperlinks, comentando, construindo junto, colaborando. Acreditamos que é preciso ter sensibilidade para escolher o hiperlink. Essa escolha já é interativa. O sentido de um espaço virtual é único para cada apreciador, pois seu percurso é pessoal, o hipertexto é pessoal.
A produção cultural no formato de Arte de Interface acontece com a estruturação de hipertextos multimídia amplos, com cantos a serem explorados. Nesse espaço artístico, cada pessoa faz seu caminho, seu recorte, no hipertexto e no sentido artístico.
Se interface é assunto pra artista, a participação é convite que a interface faz ao público.
Eros Trovador, a partir da experiência do Coletivo Palavra
Dezembro de 2011